quarta-feira, 2 de junho de 2010

Estudante Kim Veiga entrevista o diretor do CBPF, Ricardo Galvão


O aprimoramento da formação dos estudantes tanto quanto seu engajamento em questões relevantes para a comunidade de física têm sido focos de atenção constantes da coordenação da pós-graduação do CBPF. Além de incentivar a participação dos alunos em seminários temáticos e eventos científicos no país e no exterior, a coordenação da pós-graduação do CBPF tem estimulado também as atividades da Associação de Pós-graduandos José Leite Lopes (APG-JLL) , que foi criada em 1998 e ganhou esse nome em homenagem ao importante físico brasileiro e fundador do Centro, ao lado de César Lattes.

Mais que gerenciar as demandas administrativas e acadêmicas dos cerca de 120 pós-graduandos da instituição, a APG-JLL representa os estudantes no comitê Científico Assessor do CBPF e desenvolve vários outros projetos de complemento à formação dos alunos, como o registro dos cursos e seminários de algumas disciplinas – as videoaulas -, que são disponibilizadas no site da Associação como recurso para estudantes de outras instituições e para consultas futuras dos próprios alunos.

Na VIII Escola do CBPF, a APG-JLL está à frente da organização do Encontro Nacional dos Estudantes de Pós-Graduação em Física (ENAF), que acontecerá entre os dias 2 e 4 de agosto. De acordo com Kim Veiga, mestrando do CBPF e um dos representantes da atual gestão da APG, o objetivo do ENAF é "promover a troca de experiências entre os estudantes, de forma a deixar o participante à vontade para expor e debater suas ideias de forma democrática".  Além de assistir às palestras com pesquisadores convidados, os estudantes podem participar do evento com apresentações orais, apenas no caso de pós-graduandos, e painéis, também os graduandos.

Interessado em discutir as perspectivas do CBPF quanto ao aprimoramento da qualidade de ensino e da formação dos pós-graduandos, o estudante Kim Veiga conversou com o Prof. Ricardo Galvão, diretor do CBPF, sobre o assunto.




KV - O Brasil desponta hoje como uma potência emergente. Nada mais natural que a ciência do nosso país avance junto com ele.Só que o que nós vemos é uma pós-graduação que vem se repetindo há muitos anos e também com uma visão “atrasada” do pós-graduando. Em países desenvolvidos o pós-graduando é visto como um trabalhador, um pesquisador, um contribuinte, enquanto aqui nós somos vistos ainda como estudantes. Considerando que o CBPF desempenhou um papel tão crucial para a nossa ciência como o senhor acha que pode agora contribuir para esses avanços?

RG – Bem, Kim, o ponto que você colocou é bastante interessante; agora, tem umas premissas que não são totalmente verdadeiras. Falando de uma forma um pouco mais geral, realmente o Brasil avançou muito, e, se não olharmos só em Física, nós passamos de uma pós-graduação que formava poucos doutores por ano, e hoje nós formamos mais de 10 mil doutores por ano – você sabe disso –
 mas com um desnível muito grande. Então, a grande maioria – mais de 60% - está nas Ciências Sociais. Nas áreas de Exatas, muito menos, e nas Engenharias, muito menos ainda. Não temos uma pós-graduação – e não falamos só em Física – que atenda às necessidades do país. Bem, um outro problema importante é nossa produção científica. Você sabe que nós passamos de pouco mais de 0,2% da produção mundial, no final da década de 80, em artigos científicos, para cerca de 2% de toda produção mundial, isso em 20 anos. Foi um crescimento notável! No entanto, embora ocupemos a 13a. posição no ranking de artigos publicados, ocupamos somente a 23a. em  número de citações. Um ponto importante de todo nosso crescimento científico – e aí sim, falando particularmente da Física, porque depois da Medicina a Física é a maior responsável no país pela produção científica e em particular pela qualidade dessa produção – é que nós temos de dar um salto de qualidade. Não podemos mais avançar somente em números. Com relação à condição e ao tratamento do pós-graduando, seja como aluno, seja como profissional, ela não é geral no mundo todo. Então, por exemplo, no sistema americano, aluno ainda continua sendo aluno de pós-graduação. No sistema europeu, não. Eu, por exemplo, tenho a experiência de ter feito meu doutorado nos Estados Unidos e meu pós-doutorado na Holanda. Nos EUA - ainda hoje é assim - enquanto o aluno não passa pelo exame de qualificação, é considerado simplesmente aluno, e os departamentos nem se sentem responsáveis pelo seu trabalho de tese. Nesse sentido o sistema brasileiro é melhor, porque há uma responsabilidade desde que vocês começam – em todas as instituições brasileiras, mas principalmente em Física – com o tema de dissertação, com o tema de tese. Já na Europa, e em particular na Holanda, onde estive, os alunos são contratados como pesquisadores e já começam a trabalhar como pesquisadores durante seu processo de doutoramento…

KV - O que já é muito válido, porque às vezes nós chegamos a 30 anos de idade ainda como estudantes…
RG - Isso é verdade. É muito válido, mas há sempre o reverso da moeda. Quando eu estava lá participei de três concursos para selecionar alunos para fazer doutorado, e a competição é de 50 para 1. Então, realmente eles contratam, mas [os programas] não têm a mesma amplitude que no Brasil. Mas realmente você tem razão em relação a algumas coisas. Existem várias deficiências no nosso sistema, desde o apoio aos alunos, como com relação a seguro-saúde ou de contagem de tempo para previdência social - isso é uma falha grande no nosso sistema… E outra grande falha é que no Brasil grande parte dos trabalhos de pesquisa se apoia nos alunos de pós-graduação, enquanto no exterior a pesquisa se apoia nos pós-doutores. Se avança um pouquinho mais rápido a formação dos alunos na pós-graduação e se trabalha mais com os pós-doutores. Bem, eu não sei se respondi plenamente à sua pergunta…

KV – Sim.  Vamos lá agora à questão da CAPES. A CAPES faz uma avaliação trienal de todas as pós-graduações do nosso país, e muitas vezes os programas deixam de fazer coisas consideradas relevantes para atender aos requisitos da CAPES. Como o senhor vê isso? Em vez de o CBPF – e outras instituições – se submeterem aos critérios da CAPES não poderiam ditar esses critérios ou pelo menos atuar em conjunto com a CAPES?


RG - Esse também é um ponto muito importante e que se reflete na sua primeira pergunta – que nós não concluímos – sobre a questão da qualidade. O sistema nosso de pós-graduação é muito bom, mas é muito enquadrado. Principalmente pela questão das bolsas, nós temos aqueles prazos de dois anos para mestrado, quatro anos para doutorado, e temos uma certa necessidade de cursos - o que é de certa forma compreensível (que se exijam os cursos), já que os nossos doutores ao se formar nem sempre estarão trabalhando todo o tempo na sua tese, eles podem trabalhar em outras universidades, e precisarão de uma formação mais ampla… No entanto, essas limitações trabalham um pouco em contrário à criatividade e à inovação e à liberdade de pensamento…
Agora, Kim, os critérios da CAPES, a gente tem de lembrar que não são “critérios da CAPES”, uma mãe que está cuidando de todo mundo. Quem é a CAPES? A CAPES é a comunidade científica brasileira. Quem faz os critérios são os nossos colegas, os nossos colegas físicos, os nossos colegas de outras instituições. Eles, nesses comitês, é que estipulam esses critérios. Nesse ponto, o CBPF deveria tomar uma liderança maior, mas já tem tomado. Não sei se você estava presente no ano passado, quando tivemos aqui uma reunião em que esteve o presidente da CAPES falando sobre a necessidade de se ter critérios mais abrangentes. Nosso sistema é bem interessante, porque dentro dessa visão da CAPES, nós atendemos perfeitamente o estudante padrão: aquele que tem uma boa capacidade de trabalho e produz normalmente no sistema. Nós não temos capacidade de atender às exceções, ou seja, para aquele estudante que passa um tempo sem fazer nada ou queira estudar num curso fora daquilo que pretende fazer, ou ainda que tenha uma nova idéia nosso sistema não é muito abrangente...

KV – Ou às vezes aquele que está mais avançado e que tem de ver as mesmas matérias que já viu antes...

RG – É. Esse é outro problema, em particular no nosso caso, no CBPF, porque, como aqui recebemos alunos de todos os lugares do país e também do exterior e não temos uma graduação, não somos uma universidade, eles vêm com formações muito distintas. Então, naturalmente, ao dar os cursos os professores não podem direcionar aquele curso para um público especial, têm que fazer o curso para um público médio, e aí alguns alunos podem ser prejudicados. Mas lembre-se de uma coisa. Essa é uma mensagem para todos os alunos da pós-graduação: quem vai fazer sua formação é o aluno. Ele tem que usar os cursos como uma guia geral. E no nosso caso, no caso do CBPF, eu faço uma crítica. Eu acho que com relação aos cursos que nós temos – e eu estou tentando mudar isso – os alunos têm uma especialização muito cedo. A especialização no que você faz é para o seu tema de tese, mas eu vejo os alunos tomarem poucos cursos fora de sua área de trabalho. Hoje em dia, a maneira como a ciência evolui é muito interdisciplinar. As ideias vêm de várias áreas. Nossos alunos ainda estão um pouquinho preocupados – exatamente por causa da CAPES – em fazer o mais rápido possível. É nesse ponto que a CAPES atrapalha um pouquinho. Para ser muito objetivo, eu acho que o CBPF e as outras instituições de ensino teriam de atuar para que os tempos fossem um pouquinho mais expandidos. Estou levando em conta como está a produtividade do aluno.

KV – Professor, como o senhor acha que o CBPF deve conciliar as duas vias de atuação? Nós temos a pesquisa e o ensino, a formação de pessoal. Como o senhor acha que o CBPF deve integrar cada vez mais essas duas vias de atuação?

RG -  Bom, na verdade, vou começar pelo final dessa pergunta. Pesquisa e educação são integradas. O que acontece é que como o CBPF não é uma universidade, nossos pesquisadores não têm obrigação de ensinar. Como você sabe, nós temos um grande número de pesquisadores que se interessam muito pelo ensino e há pesquisadores que não se interessam. Agora, há duas formas de ensinar e de ser um bom professor. Há o trabalho formal de um professor, que ensina bem e tem classes muito atrativas, mas há também o professor ou pesquisador que não tem essa capacidade, mas no contato pessoal com o aluno ou no laboratório, ou na orientação teórica tem muita habilidade. Então, com esse ponto de vista, nós temos que integrar, adaptar as características dos professores aos alunos. Nós temos feito um esforço grande, não sei se você tem acompanhado, principalmente nos últimos dois anos, de fortalecer cada vez mais os cursos básicos, obrigar os professores a dar uma garantia de cursos básicos que vão acontecer, para que os alunos tenham uma previsão de cursos básicos num período de dois anos. Nesse caminho acho que estamos indo bem. Temos ainda, talvez, que melhorar um pouco a modernidade de nossos cursos. Esse ponto, sim. Mas estamos caminhando bem.

KV – Bem, Professor Galvão, a última pergunta, então. Como o senhor acha que o CBPF se diferencia das demais instituições de excelência, para atrair o jovem bacharel em Física hoje que ainda está indeciso sobre onde vai fazer a sua pós-graduação. Quais são as características que o CBPF tem e que esse estudante não pode encontrar em outra instituição?

RG – Essa é uma pergunta importante, mas ela tem que ser bem qualificada. A Física no Brasil tem uma atuação bastante abrangente e em várias instituições de altíssimo nível. O CBPF não tem o destaque em todas as áreas da Física.  Então, os estudantes têm de saber em que estão trabalhando. Vou começar com um exemplo típico. Se eu estivesse hoje interessado em trabalhar na área de óptica, aplicações de laser, etc, eu não escolheria o CBPF. Iria ou para Recife ou para São Carlos, por exemplo. Agora, em algumas áreas o CBPF é absolutamente o top do que existe no Brasil: física de altas energias, cosmologia, algumas áreas de ciência dos materiais, várias áreas de ciências aplicadas (em particular, biomateriais), materiais avançados, algumas áreas de nanotecnologia... Então, o aluno tem que saber realmente para onde ele quer se dirigir... Agora, vamos nos restringir à área do Rio de Janeiro. Como temos agora o exame unificado de Física para o Rio de Janeiro, o aluno realmente, ao decidir, tem que olhar as áreas de atuação das diferentes instituições do Rio de Janeiro... Bem, até aqui estou falando em termos de área. O que eu gosto do CBPF – você sabe, porque eu venho da Universidade de São Paulo – é que o fato de não termos graduação, em alguns aspectos é uma grande vantagem. Você veio da Bahia, por exemplo. Se você fosse da Bahia para a USP, também chegariam estudantes de vários lugares lá. Mas certamente os formados na própria USP têm uma certa vantagem: conhecem o lugar, conhecem os professores. Os que vêm de fora têm de se adaptar a uma estrutura e a um ambiente social existente...

KV – Mas a pergunta mesmo foi mais no sentido de condições de vida... O que o estudante do CBPF tem a mais, já que o CBPF é uma instituição histórica, uma das instituições de excelência no nosso país. O que é que o bacharel em Física não pode encontrar na Bahia, mas vem encontrar aqui e certamente melhor para ele?

RG – No que diz respeito às condições de vida – fora o fato de estar na beleza do Rio – ele está em desvantagem. Esse é um defeito muito grande do nosso sistema CAPES, já que as bolsas têm valores fixos para todas as regiões do país. Uma bolsa de mestrado ou doutorado no Rio de Janeiro representa cerca de 63% do ‘poder de compra’ do mesmo valor em São Carlos, por exemplo. Então, nesse ponto de qualidade de vida – fora o fato de estar no Rio de Janeiro – o aluno perde.  Com relação à condição científica, o CBPF apresenta uma grande vantagem: o CBPF não é um departamento de Física numa universidade. Por isso ele tem o papel – que devem ter todas as unidades de pesquisa – de promover e articular várias iniciativas científicas na área de Física. Então,  eu que tenho experiência em vários departamentos de Física no Brasil todo, com visitantes, pesquisadores que vêm de outros lugares, não vi em lugar nenhum a circulação de pessoas que eu vi no CBPF. Note que nós temos da ordem de 60 professores e chegamos a ter, por ano, o dobro ou mais de visitantes. São pessoas. Então, várias ideias novas, articulações, etc, passam pelo CBPF. E se os estudantes souberem aproveitar disso, souberem interagir, eles têm uma grande vantagem no CBPF.

KV - O CBPF teria projetos para auxiliar os estudantes, já que ele é um centro de pesquisas de ponta no nosso país para melhorar a qualidade de vida dos pós-graduandos e, consequentemente aumentar a produtividade científica?

RG - Esse é um ponto importante. Nós temos feito esforços, mas o problema é que somos amarrados pela legislação brasileira. O TCU impede que várias ações sejam realizadas. Nós não podemos dar nenhum subsídio para alimentação ou para alojamento. Isso é proibido pela legislação. A única forma que teria o CBPF de mudar isso é se conseguíssemos mais recursos através de prestação de serviços para a sociedade.

2 comentários:

  1. Parabéns a APG-JLL pela excelente entrevista. Uma parte importante que o diretor Ricardo Galvão disse, e que particularmente acho interessante, é:

    "E outra grande falha é que no Brasil grande parte dos trabalhos de pesquisa se apoia nos alunos de pós-graduação, enquanto no exterior a pesquisa se apoia nos pós-doutores. Se avança um pouquinho mais rápido a formação dos alunos na pós-graduação e se trabalha mais com os pós-doutores."

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  2. Bela entrevista Kim. Não poderia ter escolhido melhor tema para usufruir da condição do Prof. Galvão, como diretor do CBPF. Ao meu ver, só ficou faltando oq o CBPF como uma instituição precursora em tantos projetos que influenciaram ou foram responsáveis direto da atual sistemática da ciência no Brasil poderia fazer com relação a situação atual dos estudantes de pós-graduação? Quando ouvimos os mais antigos do CBPF, fica claro que perdemos muitos recursos q outrora agregavam-se a bolsa de estudos, ou seja, independente de como funciona o sistema no exterior, comparando a outros tempos, não vivemos a melhor fase da pós-graduação no Brasil. Ademais um grande abraço ao Kim e parabéns pelo bate-papo tão atual e de interesse a todos os estudantes, não apenas de física.
    Excelente blog.

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