O LHC (sigla da expressão em inglês Large Hadron Collider), a mais complexa máquina dedicada a um propósito científico projetado pelo homem, tem aparecido frequentemente na mídia desde o início de sua operação, em 10 de setembro de 2008. Infelizmente, devido a um precoce incidente, nem sempre seus aspectos positivos, científicos ou técnicos, têm sido discutidos e enfatizados. Na verdade, fez-se muito sensacionalismo acerca deste incidente e de um hipotético risco para a população geral, como a criação de um buraco negro que poderia tragar tudo ao seu redor. Tal temor não se justifica como já foi dito por muitos. Aqueles que participarão da Escola do CBPF este ano terão oportunidade de ver alguns pesquisadores abordarem a questão a partir de olhares diversos, tanto do ponto de vista teórico como experimental. Neste post, pretendo apenas enfocar o aspecto da inserção desta máquina na busca pelo conhecimento da estrutura última da matéria e como ela é uma vitrine da fronteira da Física Moderna, além de tecer alguns comentários sobre os equívocos que têm aparecido em diferentes mídias e artigos.
Como todos os aceleradores de partículas que o antecederam, o LHC baseia-se na idéia genérica de que quanto maior for a energia da partícula que compõe o feixe que irá sondar a matéria, mais ela pode penetrar nos mistérios da estrutura última da matéria. Este fato simples é uma conseqüência direta da relação de Louis de Broglie, estabelecida em 1924.
Já Ernest Rutherford, preocupado em compreender a estrutura atômica durante a segunda década do século XX, inaugurou o que se pode chamar de experimento de alvo fixo, no qual um feixe incide sobre uma lâmina delgada de um metal ou sobre um recipiente com gás. Já os colliders (anéis colisores) são aceleradores que fazem colidir um feixe contra outro, que é um problema de engenharia muito complexo, mas capaz de dobrar a energia da colisão no centro de massa. Imagine fazer dois feixes de seção reta da ordem de 17 microns (aproximadamente 1/3 do diâmetro médio de um fio de cabelo fino) colidirem depois de percorrerem um anel subterrâneo de 27 km de diâmetro! Além disto, um outro fator é decisivo na escolha de sondar as menores partículas do universo desta forma: o fato de se ter um controle bem maior sobre o feixe e sobre um conjunto de parâmetros físicos envolvidos no experimento. Por exemplo, se compararmos as energias mais altas obtidas hoje em aceleradores com as de raios cósmicos, as primeiras são bem menores, mas a estatística alcançada (o número de eventos de uma particular reação que pode ser medida com os dois meios) é muito maior.

Vista aérea - CERN [imagens: CERN]
Além dos desafios de engenharia, o LHC também coloca outros em áreas estratégicas, tais como a mecânica de precisão, a eletrônica e a informática. Todos sabem, por exemplo, que o www foi desenvolvido no CERN em torno do problema concreto de comunicação entre milhares de físicos e engenheiros envolvidos em um típico experimento moderno de física de altas energias. Os tempos a serem medidos são os menores possíveis, as distâncias, as mínimas possíveis etc. Tudo isto faz parte de um complexo projeto científico, movido essencialmente pela curiosidade científica, mas capaz de alavancar uma enorme soma de encomendas às indústrias de ponta. E aqui nos vemos de frente a um ponto delicado, pois mesmo alguns membros da comunidade científica acabam sucumbindo à tentação de justificar seu trabalho a partir destes frutos e deste “lucro”. Isto é um grande equívoco, na realidade. Uma justificativa a posteriori é que pode se constatar historicamente que mesmo o apoio descompromissado às atividades de Ciência básica dá frutos embora, a maior delas, seja a capacitação de novos quadros técnico-científicos e um avanço da compreensão de como a natureza funciona. É a curiosidade científica que deve ser apoiada, não os seus louros.
Uma das motivações para a construção do LHC foi a perspectiva de se detectar o chamado bóson de Higgs, a única das 32 partículas do Modelo Padrão que ainda não foi encontrada experimentalmente. Já se passaram 44 anos desde que ela foi proposta teoricamente como a partícula que atribui massa a algumas outras, um mecanismo sem o qual o Modelo Padrão seria um quebra-cabeça no qual está faltando uma peça. O que significa encontrá-la? E se ela não for detectada? O que seria mais importante para a Ciência? Alguém que se considera um popperiano (alusão ao filósofo Karl Popper, segundo o qual a Ciência progride quando uma teoria é refutada e não comprovada), por exemplo, preferiria que ela não fosse encontrada, pois assim haveria um real avanço da Ciência, pois todo o Modelo Padrão deveria ser revisto. Refutar uma teoria às vezes é mais importante do que confirmá-la. Aliás, a perspectiva de se encontrar “uma nova Física” ou a “Física além do Modelo Padrão” são também motivações por trás do LHC que não podem ser desprezadas.

CMS Open - Assembly of the CMS Detector [imagens: CERN]
Para tudo isso se construiu o LHC que acelera prótons a até 7 trilhões de elétrons-volt (TeV) a ser comparado com a energia mc2 do próton em repouso que é igual a cerca de 1 GeV. A ideia é que o choque entre os prótons resulte em uma energia de 14 TeV. O colisor conta com 1,8 mil magnetos supercondutores e 7 mil quilômetros de fios supercondutores, de modo que os prótons possam percorrer dezenas de quilômetros a 99,9% da velocidade da luz e se chocarem 40 milhões de vezes por segundo. Tais colisões gerarão uma temperatura 100 mil vezes superior à do Sol – semelhante à do Big Bang – o que, inevitavelmente, leva algumas pessoas desavisadas a se preocuparem com a recriação do Big Bang ou com a criação de buracos negros que absorveriam tudo ao seu redor. Ora, será que é para se preocupar com isso? Lembre que um raio quando alcança a terra gera uma temperatura da ordem daquela na superfície solar e existe ainda um maçarico de plasma, usado na indústria automobilística, que atinge temperaturas da ordem de 16 mil graus celsius, ou seja, cerca de três vezes maior que a do Sol. Nem por isso, no entanto, as pessoas acreditariam que há um risco de se recriar o Sol aqui na Terra a partir deste maçarico, por exemplo. A temperatura não é o único parâmetro em jogo, naturalmente.
Quanto ao “risco” de se recriar o Big Bang, podemos ficar tranquilos, pois, se é que ele existiu, foi uma explosão muito muito muito peculiar, na qual inclusive o espaço-tempo teria sido criado. Tal situação não poderá nunca ser alcançada ou reproduzida. De mais a mais, como no exemplo dado acima, o fato de que, com a energia disponível no LHC hoje, se pode sondar tempos da ordem de 10^{-20} segundos, não quer dizer necessariamente que as condições criadas neste laboratório sejam semelhantes às do Universo decorrido este tempo após o Big Bang. Aliás, alguns físicos sustentam que para efetivamente se chegar a pensar em reproduzir algumas das condições da criação do universo seria necessário alcançar medidas de tempo da ordem de 10^{-43} segundos.
Em suma, o LHC é um belo exemplo de o quanto o homem, movido pela curiosidade científica, é capaz de criar quando se dispõe a colaborar com outros, a compartilhar seu conhecimento em prol de um objetivo científico comum. Quiçá esse exemplo fosse compartilhado por políticos e outros setores da sociedade. Sonhando com essa perspectiva, podemos por a cabeça tranquilos em nossos travesseiros e torcer para que o LHC cumpra seu papel de fazer a Ciência avançar.
* Francisco Caruso é Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Pesquisador Titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).